Câmara Aprovou Suspensão de Ação Penal Sobre Tentativa de Golpe e Decisão é Questionada por Juristas

Câmara Aprovou Suspensão de Ação Penal Sobre Tentativa de Golpe e Decisão é Questionada por Juristas
Roque de Sá/Agência Senado/Direitos reservados

Especialistas em direito constitucional manifestaram preocupação com a decisão da Câmara dos Deputados de suspender a ação penal relacionada à tentativa de golpe de Estado contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 acusados. A medida, aprovada por 315 votos contra 143, fundamenta-se no artigo 53 da Constituição, que concede ao Legislativo o poder de interromper processos criminais contra parlamentares durante o mandato, em virtude da inclusão do deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) entre os réus.

Partidos de centro-esquerda já sinalizaram que recorrerão ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a decisão. Caso seja acionado, o STF deverá se pronunciar sobre a constitucionalidade da suspensão, podendo mantê-la ou derrubá-la. Recentemente, o STF analisa suspensão de ação penal contra Ramagem por decisão da Câmara.

A principal crítica dos juristas é que a imunidade parlamentar, prevista no artigo 53 da Constituição, não pode ser estendida aos demais réus que não são parlamentares. Essa interpretação, segundo eles, configura uma manobra jurídica.

Gladstone Leonel Jr., professor de direito da Universidade de Brasília (UnB), classificou a ação da Câmara como um “malabarismo interpretativo” que viola a Constituição. Segundo ele, o artigo 53 é claro ao restringir a imunidade a senadores e deputados, sem possibilidade de extensão a outros envolvidos na mesma ação.

Georges Abboud, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), lembrou que o STF já sumulou o entendimento de que a imunidade parlamentar não se aplica a corréus em ações penais.

“Isso o Supremo já esclareceu. O sustar a ação está ligado à imunidade parlamentar, não dá para arrastar todo mundo como quiseram fazer, o que seria uma interferência indevida no funcionamento de outro Poder. É uma distorção do texto constitucional”, argumentou Abboud.

O relator do caso na Câmara, deputado Alfredo Gaspar (União-AL), defendeu que apenas transcreveu o texto constitucional, em especial o trecho que permite “sustar o andamento da ação”. Deputados que votaram a favor da suspensão argumentaram que a Constituição determina a suspensão de toda a ação penal, independentemente dos réus. Além disso, Câmara dos Deputados aprova regime de urgência para projeto que aumenta número de parlamentares.

Outro ponto de divergência é a data em que os crimes imputados a Ramagem teriam ocorrido. O Artigo 53 da Constituição estabelece que apenas ações penais de crimes cometidos após a diplomação do parlamentar podem ser suspensas. Ramagem foi diplomado em 16 de dezembro de 2022.

Ramagem, que foi diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro, é acusado de monitorar ilegalmente autoridades e de usar a Abin para produzir desinformação e atacar a legitimidade das eleições.

O relator Alfredo Gaspar argumenta que o crime de organização criminosa é continuado, permitindo a suspensão da acusação. No entanto, o STF informou à Câmara que a suspensão se aplicaria apenas aos crimes de dano qualificado e grave ameaça contra o patrimônio da União relacionados aos ataques de 8 de janeiro. O STF entende que Ramagem deve continuar respondendo por tentativa de golpe de Estado e organização criminosa. Paralelamente, STF avança no julgamento de acusados de envolvimento em trama golpista.

Para Gladstone Leonel, o crime de organização criminosa se consumou antes da diplomação de Ramagem, quando foi estabelecido o acordo de colaboração para o golpe de Estado.

O STF também entende que a Câmara não poderia suspender a acusação de tentativa de golpe de Estado imputada a Ramagem. Gaspar, por outro lado, defende que esse crime só poderia ocorrer após a posse do novo governo eleito.

Georges Abboud argumenta que o governo “legitimamente” constituído pode ser aquele eleito nas urnas, em 30 de outubro de 2022. Ele questiona a interpretação de que, até 31 de dezembro, seria possível mobilizar o Exército e reprimir a oposição sem caracterizar um golpe de Estado.

Sobre o argumento de Ramagem de que não houve violência e grave ameaça para caracterizar a tentativa de golpe de Estado, Abboud considera essa linha argumentativa frágil. “Fica-se com a nítida impressão, ao olharmos as imagens de 8 de janeiro, que houve, sim, emprego de tipos de violência, ainda que não aquela dos golpes de estado típicos. Trata-se de uma situação complexa porque muitos crimes na atualidade precisam ser vistos de forma contextual, a partir de um encadeamento de eventos e não só de seu ponto culminante [8 de janeiro]”, concluiu.

A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a tentativa de golpe de Estado aponta que o objetivo era anular as eleições presidenciais de 2022 e previa o assassinato de Lula, Alckmin e do ministro do STF Alexandre de Moraes. Segundo a PGR, a trama golpista liderada por Bolsonaro buscou apoio das Forças Armadas para decretar Estado de Sítio e promover uma ruptura democrática. Os investigados negam as acusações. Recentemente, apoiadores de Bolsonaro protestam em Brasília por anistia a condenados por tentativa de golpe.

Em entrevista ao Estadão, o professor de Direito e cientista político Oscar Vilhena, estudioso do STF há mais de 30 anos, afirmou que não vê chances de a ofensiva da Câmara prosperar. Ele acredita que o STF não aceitará a extensão da imunidade parlamentar aos demais réus e que não haverá reação possível da Câmara.

Vilhena identifica duas motivações para a decisão da Câmara: beneficiar Bolsonaro a médio prazo e criar um precedente para proteger outros parlamentares ameaçados por inquéritos e processos criminais. “O parlamento brasileiro tem clareza de quais são seus interesses corporativos, quais são as ameaças que vêm de fora, entre elas ameaças que vem da aplicação da lei pelo STF. Eles viram como uma medida que pode protegê-los. É simples assim. Acho que é simplesmente um ato de defesa corporativa”, explica.

Vilhena afirma que os ministros do STF vão avaliar a finalidade da resolução aprovada na Câmara: “O Congresso deu uma cartada. O fato é que o Supremo vai ter que olhar se essa é uma medida que tem por objetivo frustrar a aplicação da lei ou não. Acho que esse vai ser um juízo muito debatido dentro do Supremo. Qual é a finalidade pela qual a Câmara está fazendo esse gesto, esse movimento, e qual é a consequência disso.”

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