Anistia e ocultação de cadáveres: STF debate aplicação da lei de 1979

Anistia e ocultação de cadáveres: STF debate aplicação da lei de 1979
Rosinei Coutinho/SCO/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) analisa a aplicação da Lei da Anistia de 1979 em casos de ocultação de cadáver, um crime considerado permanente. O ministro Flávio Dino defende que a anistia não se aplica a esse tipo de crime, que continua a ser cometido enquanto o corpo permanece desaparecido.

Contexto Histórico e o Caso em Questão

A Lei da Anistia, promulgada em 1979, concedeu perdão a crimes políticos e conexos cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, período que engloba grande parte da ditadura militar brasileira. O caso em discussão no STF envolve denúncia do Ministério Público Federal (MPF), apresentada em 2015, contra os ex-militares Sebastião Curió Rodrigues de Moura e Lício Augusto Ribeiro Maciel, acusados de envolvimento em crimes durante a Guerrilha do Araguaia, na década de 1970. A denúncia, inicialmente rejeitada em instâncias inferiores, chegou ao STF por meio de um Recurso Extraordinário com Agravo (ARE). O STF já se manifestou em outros casos relevantes sobre a ditadura, como no caso que rejeitou recurso de Bolsonaro contra Moraes em inquérito do golpe aqui.

A Posição do Ministro Flávio Dino

Em sua decisão, o ministro Dino argumenta que o crime de ocultação de cadáver é permanente, pois sua consumação se prolonga no tempo. Ele afirma: "O debate do presente recurso se limita a definir o alcance da Lei de Anistia em relação ao crime permanente de ocultação de cadáver. Destaco, de plano, não se tratar de proposta de revisão da decisão da ADPF 153, mas sim de fazer um distinguishing [distinção] em face de uma situação peculiar. No crime permanente, a ação se protrai [prolonga] no tempo. A aplicação da Lei da Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia".

Dino destaca que a omissão quanto à localização do corpo configura crime, impedindo o luto das famílias e representando uma continuação da ação criminosa. Ele acrescenta: "O crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática crime, bem como situação de flagrante".

Condenação Internacional e Relatório da CNV

Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas ligadas à guerrilha do Araguaia, exigindo investigações, julgamentos e punições aos responsáveis, além da localização dos restos mortais. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, apontou o Major Curió como coordenador de um centro clandestino de tortura, a Casa Azul, em Marabá (PA), e também como agente de repressão no Tocantins. Curió, falecido em 2022, chegou a ser recebido pelo então presidente Jair Bolsonaro em 2020. A repressão da ditadura militar é um tema que tem sido revisitado recentemente, como no ato "AI-5 Nunca Mais" que relembrou a repressão no Rio de Janeiro aqui.

Referência ao filme “Ainda Estou Aqui”

Na fundamentação, Dino cita o filme Ainda Estou Aqui, sobre o desaparecimento do deputado Rubens Paiva durante a ditadura, como exemplo da dor das famílias que nunca tiveram seus mortos sepultados. Ele afirma: "No momento presente, o filme “Ainda Estou Aqui” – derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice) – tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho".

Repercussão Geral e Próximos Passos

O STF reconheceu a repercussão geral da questão, visando estabelecer jurisprudência sobre a aplicação da Lei da Anistia a crimes permanentes como a ocultação de cadáver. A decisão final será submetida à apreciação dos demais ministros em sessão virtual do Plenário. O STF também debateu recentemente a competência de guardas municipais em policiamento ostensivo, confira aqui a decisão.

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