Brasil e China tentam costurar a paz na Ucrânia

O peso simbólico desse gesto é grande. Ainda mais quando os países envolvidos são os dois maiores representantes da América Latina e da Ásia no atual cenário geopolítico.
Brasil e China tentam costurar a paz na Ucrânia
Ricardo Stuckert/PR

Na diplomacia, silêncio é linguagem. E, às vezes, um gesto simples, sinaliza mais do que dezenas de reuniões de cúpula. Foi assim nesta terça-feira, 13 de maio de 2025, quando Brasil e China divulgaram uma declaração conjunta sobre a crise na Ucrânia. O documento é curto, direto, mas significativo. Pela primeira vez desde o início da guerra, que países do Sul Global assumem publicamente um esforço conjunto para incentivar uma saída negociada, a partir da disposição — ainda tímida — das partes em conflito.

A declaração, divulgada em Pequim, acolhe a proposta feita por Vladimir Putin no dia 10 de maio para abertura de negociações, e reconhece a manifestação positiva de Volodymyr Zelensky, que, segundo o texto, também se mostrou receptivo à ideia. “Os governos do Brasil e da China esperam que se inicie, no menor prazo possível, um diálogo direto entre as partes, única forma de pôr fim ao conflito”, diz o comunicado.

Não é a primeira vez que o Itamaraty e o governo chinês falam em paz. Mas é a primeira vez que o fazem em uníssono, com data, local e contexto político definido — e após sinalizações públicas de Moscou e Kiev. A nota não se limita a apoiar o cessar-fogo. Ela propõe uma visão mais ampla: que qualquer negociação só será efetiva se contemplar as preocupações legítimas de todas as partes e tiver caráter vinculante e duradouro.

A escolha de fazer a declaração em conjunto não é acidental. Há um recado claro aos países do eixo ocidental — notadamente Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia — que têm pautado o debate internacional sobre a guerra da Ucrânia com ênfase em sanções, envio de armas e manutenção do confronto como estratégia de contenção russa.

Brasil e China propõem outro caminho: o da diplomacia pragmática, que busca viabilidade política antes de condenações formais. Não há, no texto, qualquer julgamento direto sobre culpados. Há, sim, o esforço de criar ambiente para diálogo, a partir de gestos reais, como o aceno de Putin e a resposta de Zelensky.

A posição, embora cautelosa, reposiciona o Brasil num tema que vinha sendo tratado com certo desconforto no Palácio do Planalto. Desde os primeiros meses da guerra, o presidente Lula defendeu abertamente uma “saída negociada”, mas sofreu críticas internacionais ao minimizar a responsabilidade da Rússia. Agora, ao lado da China, seu governo retoma a narrativa da mediação — e tenta transformá-la em influência concreta.

Grupo de Amigos da Paz: um projeto do Sul Global

O texto divulgado nesta terça-feira também menciona um esforço diplomático já em andamento: a criação do Grupo de Amigos da Paz, lançado por Brasil e China em setembro de 2024, durante sessão nas Nações Unidas. O grupo reúne países do chamado Sul Global e tem como objetivo pressionar por negociações multilaterais em conflitos armados, com ênfase em soluções políticas sustentáveis.

A menção ao Grupo no comunicado reforça uma aposta antiga da política externa brasileira: a de que o mundo não pode ser governado apenas pelos que detêm o poder bélico e econômico. O Sul Global, marcado por conflitos esquecidos e exclusão dos grandes fóruns decisórios, tenta agora ocupar um espaço diplomático mais relevante — não como potência, mas como possibilidade.

Ao mencionar que “seguem à disposição, junto com o Sul Global, para continuar apoiando os esforços para pôr fim ao conflito”, Brasil e China reafirmam que a paz também pode nascer fora dos eixos tradicionais de decisão. O peso simbólico desse gesto é grande. Ainda mais quando os países envolvidos são os dois maiores representantes da América Latina e da Ásia no atual cenário geopolítico.

Paz como construção — e não apenas como cessar-fogo

A leitura da declaração deixa claro: não se trata apenas de interromper o conflito, mas de enfrentar suas causas. Ao falar em “solução política para a crise em suas raízes”, o texto aponta para algo que boa parte da comunidade internacional evita encarar: a guerra na Ucrânia não é apenas uma invasão territorial, mas o resultado de décadas de tensões geopolíticas, rivalidades históricas e ausência de mecanismos eficazes de mediação.

Brasil e China, cada um a seu modo, enxergam aí uma oportunidade. De um lado, a China reforça sua ambição de liderar uma ordem multipolar. Do outro, o Brasil tenta resgatar o papel de mediador respeitado, perdido nos últimos anos. Há pragmatismo, sem dúvida. Mas há também uma leitura crítica do atual cenário internacional, cada vez mais dividido entre blocos militares e crises prolongadas.

A guerra, que já dura praticamente três anos, ceifou centenas de milhares de vidas e provocou deslocamentos forçados em massa. Mas, até aqui, nenhuma das grandes potências do Ocidente propôs um roteiro concreto de saída. O gesto de Brasil e China pode não ser suficiente para mudar o curso do conflito — mas é, hoje, uma das poucas ofertas públicas de diplomacia ativa no tabuleiro.

Uma voz entre ruídos

No momento em que o mundo parece ensurdecido pelo barulho das armas, qualquer gesto em favor do diálogo precisa ser levado a sério. A declaração conjunta Brasil-China é, antes de tudo, um convite à racionalidade num tempo de radicalizações.

E talvez, nessa escolha silenciosa de mediar em vez de escalar, o Brasil reencontre sua melhor vocação: a de ser ponte — nunca trincheira.

Deixe um comentário

Seu e‑mail não será publicado.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.