Um caso que chocou a França e o mundo teve seu desfecho nesta quinta-feira (19), com a condenação de 50 homens pelo estupro em série de Gisèle Pelicot, orquestrado por seu ex-marido, Dominique Pelicot. O tribunal de Avignon sentenciou os réus, que ficaram conhecidos como 'Senhores Todo Mundo', dada a sua variedade de perfis sociais, e também determinou a pena máxima de 20 anos de prisão para Dominique.
A diversidade dos condenados impressiona: entre eles, jovens e idosos, pessoas de diferentes etnias, profissionais como bombeiros, motoristas, militares, seguranças, um jornalista e um DJ. Todos foram considerados culpados por atos sexuais não consentidos contra Gisèle, que foi drogada por seu ex-companheiro durante uma década com comprimidos para dormir.
Durante o julgamento, que se iniciou em setembro, muitos réus demonstraram atitudes desafiadoras, enquanto outros evitaram contato visual com os juízes, buscando apoio em seus advogados. As alegações apresentadas pelos réus variavam, desde a afirmação de que não sabiam que Gisèle estava incapacitada de dar consentimento até a alegação de que foram manipulados por Dominique.
As penas e os crimes
As sentenças foram definidas com base em fatores agravantes, como a frequência com que os réus visitaram a casa dos Pelicot e se houve penetração. Joseph Cocco, um técnico esportivo aposentado de 69 anos, foi condenado a três anos de prisão por agressão sexual agravada. No outro extremo, Romain Vandevelde, de 63 anos, foi considerado culpado de estupro qualificado e condenado por ter relações sexuais com Gisèle, sabendo ser portador de HIV e sem utilizar proteção.
Um ponto chave para o sucesso da acusação foi o extenso material em vídeo produzido por Dominique, que registrou os abusos durante anos. Isso impossibilitou que os réus negassem sua presença na residência dos Pelicot, apesar de muitos tentarem minimizar a gravidade dos crimes.
A lei francesa define estupro como qualquer ato sexual praticado com violência, coerção, ameaça ou surpresa, sem mencionar a necessidade de consentimento explícito. Contudo, alguns réus argumentaram que, embora seus atos se enquadrassem tecnicamente na definição de estupro, eles não seriam culpados por não saberem da incapacidade de Gisèle de consentir.
As Defesas e Contradições
Um dos réus, Christian Lescole, bombeiro voluntário, alegou que seu “corpo a estuprou, mas seu cérebro não”, exemplificando o intrincado raciocínio de alguns acusados. Jean-Pierre Maréchal, de 63 anos, foi condenado a 12 anos por estupro e tentativa de estupro de sua esposa. Ele admitiu ter aprendido com Dominique Pelicot a drogar sua própria esposa. Ahmed Tbarik, um encanador de 54 anos, alegou que não teria escolhido uma mulher de 60 anos para estuprar, enquanto Redouane Azougagh, desempregado de 40 anos, argumentou que não teria permitido que o marido de Gisèle filmasse os atos, caso realmente quisesse cometer estupro.
Vários réus alegaram terem sido intimidados por Dominique, que teria uma “personalidade abominável”. Outros afirmaram terem sido drogados e não se recordarem dos atos. A maioria, porém, sustentou que foram manipulados por Dominique, que os teria convencido de que se tratava de um jogo sexual consensual.
O próprio Dominique Pelicot admitiu que instruiu os homens para não acordarem sua esposa, orientando-os a evitar o uso de perfumes ou cigarro e aquecer as mãos antes de tocá-la, indicando que todos tinham consciência de que ela estava inconsciente e não consentia com as ações.
Vidas Dissecadas no Tribunal
O julgamento, que se estendeu por meses, trouxe à tona histórias de abusos e traumas. Simoné Mekenese, um trabalhador da construção civil de 43 anos, contou ter sido estuprado aos 11 anos. Jean-Luc LA, de 46 anos, compartilhou sua história de refúgio em um acampamento na Tailândia. Fabien Sotton, de 39 anos, revelou ter sido vítima de abusos e violência desde a infância. Muitas famílias dos réus testemunharam em busca de respostas, tentando compreender como esses homens, parte de suas vidas, se envolveram em tais crimes.
Declarações das Famílias
Esposas e parentes expressaram seu choque e dor diante das acusações. O pai de Christian Lescole disse que o filho era a alegria de sua vida e que devia ter acontecido algo que o levou a se envolver nisso. A ex-esposa de Thierry Parisis, de 54 anos, afirmou que ele sempre foi gentil e respeitoso, indicando uma possível reconciliação, enquanto a ex-namorada de Joan Kawai, de 27 anos, declarou que estaria ao seu lado, não importasse o que acontecesse.
Samira, companheira de Jerome Vilela, expressou sua confusão ao descobrir que ele havia ido à casa dos Pelicot seis vezes. Vilela admitiu ter estuprado Gisèle por ter a ideia de ter “carta branca” sobre ela, colocando a culpa em sua “sexualidade incontrolável”.
A Perspectiva da Vítima
Gisèle Pelicot, que acompanhou quase todas as audiências, fez um pronunciamento contundente, afirmando que os homens a estupraram em plena consciência. Ela questionou por que eles não procuraram a polícia e que um telefonema anônimo poderia ter salvo sua vida. Gisèle saiu do tribunal aplaudida, declarando que nunca se arrependeu de ter tornado o caso público, e destacou que sua decisão foi também para seus netos, fortalecendo a luta contra a violência sexual.
Em sua declaração, Gisèle agradeceu o apoio do público e afirmou que a luta é de todas as pessoas que vivenciaram casos semelhantes. “Para quem tem uma história desta nas sombras, estamos todas na mesma luta. O apoio das pessoas realmente me tocou e me deu a força para vir ao tribunal e dar a cara”, disse ela.
Penas Máximas para Dominique
Dominique Pelicot, considerado culpado por todos os crimes, incluindo estupro agravado, foi sentenciado a 20 anos de prisão. O julgamento ganhou repercussão internacional após a vítima tornar o caso público.
Ao longo do processo, ficou evidente que Dominique drogava Gisèle com tranquilizantes, misturando-os em sua comida e bebida, antes de convidar outros homens para estuprá-la. Ele também filmava os abusos e instruía os homens a não acordá-la. A polícia descobriu os crimes após ele ser preso por assédio em um mercado em 2020.
O julgamento também revelou que Dominique guardava fotos nuas de sua própria filha, Caroline, que testemunhou em choque a descoberta das imagens.
O caso Gisèle Pelicot serve como um alerta para a necessidade de combater a violência sexual e a impunidade, e um exemplo da resiliência das vítimas na busca por justiça.
Quer receber as principais notícias do Portal N10 no seu WhatsApp? Clique aqui e entre no nosso canal oficial.