A promessa de pagar menos nunca foi tão perigosa. Em pleno 2025, milhares de aposentados, pensionistas e servidores públicos em todo o Brasil estão sendo vítimas de uma fraude silenciosa e altamente danosa, travestida de vantagem bancária: o chamado golpe da portabilidade do empréstimo consignado. Uma prática que se infiltra nas brechas da legislação, distorce um direito legítimo e vem multiplicando dívidas e desespero entre os mais vulneráveis — quase sempre com aparência de legalidade.
Esse tipo de golpe, embora não seja novo, tem se sofisticado. Não envolve apenas estelionatários clássicos, mas sim estruturas inteiras de correspondentes bancários que operam no limite da ética — e muitas vezes além dele. A vítima, geralmente um idoso, acredita estar apenas transferindo um contrato de um banco para outro com juros menores.
Não perca nada!
Faça parte da nossa comunidade:
Mas o que acontece, na prática, é a contratação de um novo empréstimo não solicitado, com liberação de valores e acréscimo de parcelas no contracheque ou benefício do INSS. Sem que o consumidor tenha real ciência ou tenha autorizado com clareza.
A seguir, destrinchamos como o golpe opera, quem mais sofre com ele, quais os caminhos legais para enfrentá-lo e por que essa prática se tornou uma praga moderna contra aposentados.
A portabilidade que virou armadilha
O Banco Central do Brasil regulamenta a portabilidade de crédito como um direito do consumidor desde 2013. Em tese, ela deve permitir que um tomador de empréstimo transfira sua dívida para outro banco, mantendo o saldo devedor original, mas com melhores taxas ou condições. No caso do consignado, essa ferramenta poderia ser útil para reduzir parcelas mensais sem gerar novo endividamento.
Mas no país do “jeitinho bancário”, o que deveria ser um mecanismo de alívio virou uma porta de entrada para fraudes. O que vemos com cada vez mais frequência é um processo travestido de portabilidade que, na prática, é a contratação de um novo empréstimo disfarçado.
O modo de operação é quase sempre o mesmo:
- A vítima recebe uma ligação ou mensagem no WhatsApp, geralmente de um “consultor financeiro” dizendo representar um banco grande ou conhecido.
- É prometida uma redução de parcela, quitação de contratos antigos ou troca de banco com juros mais baixos — sem necessidade de novo contrato.
- Documentos são solicitados rapidamente, muitas vezes com alegações genéricas (“é só para simulação”).
- A assinatura do novo contrato é feita por meio digital, via aplicativo ou código SMS, sem a devida explicação sobre o conteúdo.
- Em poucos dias, o dinheiro “entra na conta” — um valor não solicitado. E junto com ele, uma nova dívida.
A vítima só percebe quando passa a ter duas parcelas descontadas: a do contrato original e a do “novo”. E ao buscar o banco, descobre que há um contrato assinado digitalmente em seu nome, com suposto aceite eletrônico. A armadilha está completa.
Quem são os principais alvos?
Os principais alvos são os aposentados do INSS, que muitas vezes têm margem consignável disponível e baixo grau de instrução digital. Mas não são os únicos. Também são visados:
- Pensionistas e beneficiários da Loas;
- Servidores públicos ativos e inativos;
- Funcionários celetistas com acesso a crédito consignado;
- Pessoas em renegociação de dívidas ou com nome limpo recente.
O que chama atenção é que a maioria das vítimas não percebe que contratou um novo empréstimo. O discurso de que “é só uma portabilidade” convence, e a linguagem usada é técnica demais para ser compreendida por quem não lida com contratos bancários diariamente. O golpe, portanto, não se baseia em falsificação grosseira, mas em manipulação da informação e má-fé no processo de adesão.
As consequências são devastadoras. Um contrato de R$ 8 mil que teria mais dois anos para ser quitado pode ser “portado” para um novo de R$ 14 mil, com 84 meses de desconto. E o detalhe: o contrato antigo não é quitado, porque o banco responsável pela nova “portabilidade” apenas liberou um novo crédito, sem amortizar a dívida anterior.
O resultado é um rombo direto no orçamento familiar. Em alguns casos, vítimas relatam que passaram a ter até três parcelas descontadas simultaneamente, mesmo com margem limitada — o que demonstra falha grave de controle do sistema de crédito consignado.
O aspecto mais cruel é emocional:
- A sensação de ter sido enganado e não ter para onde correr;
- A dificuldade em encontrar quem, de fato, realizou a operação;
- A negligência de muitos bancos ao não reconhecerem a fraude como responsabilidade própria.
O que a Justiça tem dito?
O Judiciário tem reconhecido a prática como abusiva em diversas decisões. O Superior Tribunal de Justiça já consolidou entendimento de que a contratação de crédito sem consentimento informado e inequívoco fere o Código de Defesa do Consumidor, e que a instituição financeira é responsável pelos atos de seus correspondentes autorizados.
Além disso, tribunais estaduais têm concedido:
- Cancelamento de contratos fraudulentos;
- Suspensão imediata de descontos no benefício;
- Restituição em dobro dos valores descontados indevidamente;
- Indenizações por dano moral, que variam de R$ 3 mil a R$ 20 mil, a depender do grau de prejuízo e da vulnerabilidade da vítima.
Em ações bem fundamentadas, é possível obter liminar (tutela de urgência) para suspender os descontos e travar o ciclo da dívida antes que ele consuma toda a renda do idoso.
Como agir se você foi vítima
Se você ou alguém da sua família percebeu que valores não solicitados entraram na conta ou que houve aumento no número de parcelas descontadas do benefício, é hora de agir. O passo a passo é técnico, mas necessário:
- Consulte o extrato de empréstimos no Meu INSS (ou diretamente com o setor de RH se for servidor).
- Solicite cópia de todos os contratos supostamente assinados. O banco tem obrigação de fornecer.
- Registre boletim de ocorrência e anexe os documentos disponíveis.
- Notifique o banco e o correspondente envolvido formalmente.
- Procure um advogado especialista em Direito Bancário. Só com ação judicial é possível pedir cancelamento, suspensão dos descontos e indenização.
E o que pode ser feito preventivamente?
A prevenção passa por educação financeira e jurídica. Mas isso, isoladamente, é insuficiente. É papel do Estado, dos órgãos de defesa do consumidor e do INSS monitorar as autorizações de portabilidade com mais rigor.
Medidas como:
- Exigir validação biométrica para portabilidade;
- Implementar um prazo de carência para novo crédito após um contrato ativo;
- Auditorias permanentes nos correspondentes bancários;
- E multas severas para bancos que operam com dolo ou omissão.
Essas são ações que poderiam conter a epidemia de fraudes travestidas de facilidades financeiras.
A portabilidade do consignado é, em teoria, uma ferramenta poderosa de reequilíbrio financeiro. Mas quando manipulada por estruturas que se aproveitam da fragilidade informacional de idosos e servidores, ela vira uma armadilha formalizada.
Não se trata de erro — é um sistema montado para parecer legal, mas que em sua essência, burla o princípio do consentimento.
Se você foi vítima, não normalize o prejuízo. Você tem direitos. E tem como reverter esse quadro — na Justiça, com respaldo jurídico e provas. Nenhuma dívida nasce do silêncio. E nenhum contrato sem clareza deve prevalecer sobre a dignidade de quem vive do que já contribuiu a vida inteira.