Quando a cobrança vira ameaça: o terrorismo diário dos endividados no Brasil

É legítimo cobrar o que é devido. Mas é inadmissível transformar a cobrança em tortura emocional.
Quando a cobrança vira ameaça: o terrorismo diário dos endividados no Brasil
Foto de kues1 via Adobe Stock

A primeira mensagem chega às 7h20. É uma notificação por e-mail dizendo que “você pode ser negativado hoje”. Às 9h, o telefone toca. Um número desconhecido. Ninguém responde — só uma gravação fria avisando sobre “pendência financeira urgente”. Ao meio-dia, nova ligação. E às 14h32, um WhatsApp com a ameaça explícita: “Último aviso antes de medidas judiciais. Seu CPF pode ser bloqueado. O passaporte também.”

Quem deve sente. Mas o que muitos vivem hoje não é mais cobrança: é cerco. É pressão psicológica. É um terrorismo cotidiano que se disfarça de cobrança, mas se instala como angústia. E ninguém faz nada.

A explosão de dívidas de cartão de crédito, especialmente após os juros abusivos que ultrapassam 440% ao ano, gerou uma nova indústria no país: a da cobrança coercitiva, muitas vezes operada por empresas terceirizadas que ultrapassam qualquer limite de razoabilidade — e de legalidade.

Não é só dívida. É humilhação

É preciso dizer com todas as letras: a dívida não torna ninguém criminoso. E mesmo inadimplente, o consumidor continua sendo sujeito de direitos. A insistência de algumas empresas e financeiras em empurrar o devedor para um lugar de vergonha, pânico e isolamento é mais do que cruel. É ilegal.

No entanto, os relatos são quase padronizados:

  • Mensagens diárias, inclusive aos domingos;
  • Ligações sucessivas com tom ameaçador;
  • Envio de comunicados falsos dizendo que o CPF será “bloqueado judicialmente”;
  • Pressão sobre familiares, que chegam a ser informados sobre a dívida;
  • Assédio via WhatsApp em horários noturnos, com texto em caixa alta e insinuações de protesto em cartório.

Eles falam em bloquear meu passaporte, tomar meus bens, que vão acionar o Ministério Público. Eu acordo com medo e durmo com culpa. Já pensei em sair do WhatsApp”, me disse uma leitora do Portal N10, que preferiu o anonimato.

A dívida passa a ocupar o centro da vida — e o medo substitui qualquer tentativa racional de negociação.

O que a lei diz (e o que as empresas ignoram)

A legislação brasileira é clara. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante, no artigo 42, que o inadimplente não pode ser exposto ao ridículo, nem ser submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Cobrar, sim. Assediar, não.

O Código de Processo Civil, por sua vez, estabelece regras para cobrança judicial e cumprimento de sentença. Mas bloqueio de passaporte ou CNH só ocorre após decisão judicial motivada — e em casos específicos, com direito à defesa. Usar isso como ameaça em mensagens automáticas é, no mínimo, má-fé. E, em muitos casos, configura abuso de direito e prática ilícita passível de indenização.

O STJ já decidiu que o credor pode protestar a dívida e acionar o Judiciário — mas não tem o direito de fazer o devedor se sentir encurralado em casa, nas redes sociais e no telefone.

O que essas empresas fazem — com anuência ou silêncio das administradoras — é transformar a cobrança em punição antecipada. Um castigo emocional para quem já está ferido financeiramente.

O peso invisível da inadimplência

O Brasil tem mais de 70 milhões de pessoas inadimplentes. Não se trata mais de “casos isolados”. Estamos falando de um trauma coletivo, muitas vezes silencioso. Pessoas que param de atender ligações, mudam de número, evitam familiares, abandonam redes sociais — tudo para escapar da exposição ao medo.

Há endividados que não devem apenas dinheiro. Estão devendo paz.

E nesse cenário, pouco se fala sobre saúde mental. O endividamento prolongado está associado a quadros de ansiedade, depressão, insônia e isolamento social. A dívida adoece — e as formas de cobrança adoecem ainda mais.

Afinal, como uma cobrança pode acontecer sem infringir a lei?

Para que a cobrança seja considerada legal, ética e justa, algumas regras devem ser seguidas:

  • Horário adequado: contatos devem ocorrer entre 8h e 20h, em dias úteis. Ligações após esse horário ou em fins de semana, de forma reiterada, configuram abuso.
  • Discrição: a cobrança deve ser feita diretamente ao devedor. Informar familiares, colegas de trabalho ou terceiros é vedado e pode gerar processo judicial.
  • Comunicação clara, sem ameaça: é legítimo informar que o nome poderá ser negativado, desde que isso já esteja no prazo de regularização. Mas ameaçar medidas irreais ou inventadas, como “bloquear CPF”, “prender o devedor”, ou “acionar o MP”, é ilegal e abusivo.
  • Vedação ao constrangimento: qualquer conduta que exponha o consumidor, o ridicularize ou o faça sentir-se intimidado pode ser enquadrada como dano moral.
  • Negociação transparente: a cobrança deve oferecer condições reais de negociação, com valores discriminados, contato direto com a empresa credora e acesso a canais de atendimento — não bots anônimos pressionando pelo WhatsApp.

É legítimo cobrar o que é devido. Mas é inadmissível transformar a cobrança em tortura emocional. Quando a negociação é substituída pela ameaça, quando o WhatsApp vira instrumento de chantagem, e quando empresas terceirizadas agem como se estivessem acima da lei, não é mais sobre inadimplência. É sobre abuso.

Quem deve precisa pagar. Mas quem cobra precisa respeitar.

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