O mês de junho chegou e o Nordeste inteiro se veste de festa. É a época em que a nossa identidade cultural salta com força: forró, quadrilhas, fogueiras, bandeirolas, pamonha, milho verde e aquele ar de celebração que nos acompanha geração após geração. Eu mesmo não consigo pensar em infância sem lembrar das noites de São João. Era tudo ali: bandeirolas enfeitando ruas do bairro, a vizinhança reunida, música e o arrasta-pé até altas horas.
Mas o tempo vai passando, e algumas perguntas começam a ficar difíceis de ignorar. Até que ponto a nossa tradição justifica manter práticas que hoje sabemos que provocam dor real em muita gente? É nesse ponto que eu sempre volto quando penso em fogos de artifício com estampido e nas fogueiras acesas nos centros urbanos.
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Os fogos, antes vistos como símbolo da festa, hoje são, para muitos, um instrumento de tortura sonora. Quem convive com um filho autista sabe o que significam essas explosões para o sistema sensorial da criança. O pânico, a crise de choro, o desespero incontrolável. Para esses pais, o São João não é tempo de alegria — é de vigilância e medo.
E o problema não se limita às pessoas com TEA. Recém-nascidos que acordam assustados a cada estrondo; idosos acamados; pacientes em recuperação hospitalar; famílias que, mesmo em casa, não conseguem ter um minuto de paz durante as noites de festa. O rojão que diverte um grupo produz terror e sofrimento a outro — e a conta nunca é dividida igualmente.
Quem tem animais de estimação sente na pele o drama. Cachorros entram em pânico, tentam fugir, destroem portas, sofás, se machucam sozinhos tentando escapar de um som que eles não conseguem entender. Quantos animais não desaparecem nas noites de São João por pura desorientação?
Aos poucos, parte das cidades do Rio Grande do Norte começa a entender que isso não pode mais ser tratado como algo menor. Mossoró, com sua campanha “São João Sem Rojão“, já lançou um chamado importante para a sociedade. Não se trata de proibir a festa — trata-se de adaptá-la a um tempo em que a ciência e a empatia nos permitem compreender o tamanho do dano.
Em Natal, o tema começa a sair das gavetas do silêncio. Desde o ano passado, durante o período eleitoral, já existe norma impedindo o uso de fogos com barulho — e ainda que restrita a um calendário específico, a legislação já mostra que a cidade reconhece o problema. Agora, com Paulinho Freire na prefeitura, seria o momento de ampliar a discussão e assumir a responsabilidade pública de fazer o debate caminhar.
O mesmo raciocínio vale para as fogueiras. Românticas na memória afetiva, sim. Mas nas cidades, no meio dos bairros superpovoados, as fogueiras viram problemas sérios de saúde. A fumaça carregada agrava casos de asma, bronquite, DPOC e alergias respiratórias. Crianças e idosos são os primeiros a lotar os prontos-socorros nas noites e nos dias seguintes. Enquanto isso, muita gente ainda repete a velha máxima de que “sempre foi assim“. Sempre foi, é verdade. Mas o conhecimento avança, e as consequências hoje estão bem estabelecidas.
Isso não significa matar o São João. Ao contrário: significa modernizá-lo para que ele seja, finalmente, uma festa verdadeiramente de todos. Fogos visuais silenciosos já existem. Fogueiras ecológicas são realidade em diversos municípios. Falta-nos apenas a disposição de abrir mão de velhos hábitos em nome de algo muito simples: o direito do outro de viver o mesmo São João sem medo, sem dor, sem hospital e sem sofrimento.
Defender a tradição não é defender o barulho e a fumaça. A tradição de verdade está no forró, nas quadrilhas, no reencontro dos amigos, na mesa farta, no calor humano das noites de junho. É isso que deve sobreviver. O resto é apenas apego desnecessário ao que machuca.
Se a gente quer mesmo um São João de todos, o barulho não pode mais ser parte da festa. A inclusão, essa sim, precisa ser tradição.