A declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (28), em Cachoeira dos Índios, na Paraíba, não passou despercebida — e nem poderia. Ao afirmar que “Deus deixou o sertão sem água porque sabia que eu ia ser presidente e que eu ia trazer água para cá”, Lula reduziu uma tragédia histórica, de dor e abandono institucional, a um roteiro conveniente de exaltação pessoal.
Essa frase, dita com a naturalidade de quem já se acostumou a ser aclamado, precisa ser confrontada. O sertão nordestino não foi esquecido por Deus. Foi — e ainda é — negligenciado pelo Estado brasileiro. Centenas de milhares de famílias enterraram gerações inteiras sem acesso à água potável. Não por capricho divino, mas por omissão política.
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Transformar essa dor coletiva em marketing político beira o desrespeito.
A obra de transposição do Rio São Francisco é, de fato, grandiosa. Mas ela não pertence a um homem. Foi pensada desde o século XIX, atravessou impérios e repúblicas, passou por diferentes governos e só foi possível porque milhares de técnicos, operários, engenheiros e servidores públicos dedicaram anos de trabalho — invisíveis nos palanques. A água que agora corre nos canais não é graça presidencial. É resultado de esforço coletivo, dinheiro público e dever de Estado.
O problema da fala de Lula não está só no conteúdo religioso, mas no uso político da fé popular para reforçar uma narrativa messiânica. O presidente não é o primeiro a fazer isso — nem será o último. Mas quando afirma que só ele, um menino pobre que carregava pote d’água, seria capaz de fazer a obra, Lula tenta se posicionar como o único justo em meio a séculos de omissão. É o tipo de discurso que enfraquece a democracia e desacredita a pluralidade de soluções políticas.
Mais grave: a frase exime os verdadeiros responsáveis pelo sofrimento do sertanejo ao longo de décadas. Se a seca era parte do plano divino para esperar por Lula, então nenhum dos presidentes anteriores foi, de fato, culpado por não agir. Tampouco o Congresso que não votou, os agentes públicos que desviaram verbas, os empreiteiros que superfaturaram obras. Foi tudo parte de um plano maior, quase bíblico, para consagrar um governante. Um erro perigoso e perverso.
A personalização da política como salvação é um dos grandes males do Brasil contemporâneo. A cada ciclo, trocamos o herói da vez — e continuamos a repetir os mesmos atrasos estruturais. O semiárido nordestino precisa de acesso contínuo à água, sim. Mas também de rede de esgoto, saúde, educação, produção agrícola sustentável, políticas de convivência com a seca. Precisa, sobretudo, ser ouvido — e não apenas cortejado em discursos ensaiados.
É preciso ter coragem para dizer que a fala do presidente foi desrespeitosa com todos que ainda hoje vivem sob ameaça de colapso hídrico. A água que chega hoje a algumas regiões da Paraíba ou do Ceará não cancela o sofrimento de quem segue dependendo de carros-pipa em pleno século XXI. Nem livra o governo atual de fazer sua parte além da entrega de obras iniciadas anos atrás.
A transposição do São Francisco é política pública. Não milagre. E o sertão não é altar de adoração. É terra de gente real, cansada de carregar nas costas a seca, a fome, o abandono — e agora também, as promessas personalizadas de salvação.
Porque se Deus deixou o sertão sem água, como disse Lula, não foi para glorificar ninguém. Foi porque os governantes o deixaram seco. E isso tem nome: negligência. Não profecia.