Na tarde de 11 de junho, em um posto de combustíveis na cidade de Oeiras, região metropolitana de Lisboa, a jornalista potiguar Lorena Gurgel, 39 anos, vivenciou um episódio que rompeu de forma dolorosa a rotina de quem escolheu Portugal para viver em busca de segurança e estabilidade.
Moradora do país há dois anos, ela foi hostilizada publicamente por um homem português, que a ofendeu com gritos e frases de cunho xenofóbico ao presenciar um erro trivial durante o abastecimento de combustível.
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“Estás parva. Estás a bagunçar tudo. Estás a fazer tudo errado. Vocês brasileiros só vêm para cá para bagunçar. Eu moro aqui perto e vejo vocês a bagunçar todo tempo”, gritou o homem, segundo relato de Lorena. Antes de se afastar, ele completou a agressão ordenando que ela “voltasse para sua terra”.
O caso, inicialmente não comunicado às autoridades, foi relatado por Lorena dois dias depois, em um vídeo publicado em suas redes sociais (vídeo mais abaixo). A gravação gerou forte repercussão, tanto entre brasileiros residentes em Portugal quanto entre internautas no Brasil, provocando uma onda de relatos semelhantes. A jornalista afirmou que compartilhou a experiência com o objetivo de encorajar outras vítimas de xenofobia a denunciarem.
“Eu quero que essa história se dissemine e que outras pessoas se sintam encorajadas a contar suas histórias também. A ideia é incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo porque a gente não pode se calar e aceitar o inaceitável”, afirmou.
“Fiquei com vergonha. Me senti suja.”
Lorena, que hoje atua no escritório de Relações Internacionais da empresa onde já trabalhava no Brasil, classificou a experiência como “traumática”. Ela relata que, ao tentar manusear a bomba de combustível, deixou uma das mangueiras cair acidentalmente. Foi o suficiente para o homem iniciar os gritos, mesmo estando a cerca de cinco metros de distância.
“Eu fiquei muito revoltada. Disse: ‘Quem o senhor pensa que é para falar comigo dessa forma? O senhor não é melhor do que ninguém. Baixe o seu tom, porque o senhor não tem o direito de gritar comigo’. Ele gritava muito. Parecia realmente que estava completamente descontrolado.”
A situação só foi contida após a intervenção de uma funcionária da conveniência do posto, que pediu para o homem entrar na loja e ajudou Lorena a concluir o abastecimento. Segundo a jornalista, a atendente confirmou com um gesto que reconhecia o episódio como xenofobia.
“Você viu que fui vítima de xenofobia, não foi?”, perguntou Lorena. O aceno afirmativo da funcionária serviu como confirmação silenciosa de uma dor que, embora muitas vezes silenciada, não é incomum.
Rede de solidariedade e denúncias
O vídeo postado por Lorena nas redes sociais provocou uma onda de engajamento. Comentários e relatos semelhantes se multiplicaram, criando um verdadeiro confessionário público de brasileiros que também enfrentaram situações discriminatórias na Europa.
“Quando estive aí também passei por situações de xenofobia.”
“Sofri xenofobia na Suécia. Meu filho estava comigo.”
“Essa xenofobia precisa ser exposta. Não é caso isolado. É estrutura.”
A jornalista destaca que o episódio não foi isolado, tampouco é uma surpresa diante do clima político atual. O crescimento da extrema-direita portuguesa e a ascensão do partido Chega, que passou de um para 60 representantes na Assembleia Nacional em quatro anos, são fatores apontados por ela como catalisadores do aumento da intolerância.
“Há sempre uma xenofobia velada aqui. Sinto o tempo todo que somos preteridos: nos serviços públicos, nos restaurantes… Há frases sutis o tempo inteiro: os brasileiros se vestem assim, os brasileiros falam assado. Tudo ficou mais visível após o crescimento da extrema-direita aqui.”
“Não é falta de presença. É excesso de invisibilidade.”
Os números ajudam a compreender a dimensão do fenômeno. De acordo com dados do Itamaraty e da Segurança Interna portuguesa:
- O número de estrangeiros em Portugal saltou de 383,7 mil (2015) para mais de 1 milhão (2023).
- Brasileiros já representam 360 mil — o maior grupo imigrante no país.
- De 2023 para 2024, o número de brasileiros barrados ao tentar entrar em Portugal subiu 700% (de 179 para 1.470).
- Queixas formais de xenofobia cresceram 30% entre 2022 e 2024. Só em 2024, 150 denúncias envolveram brasileiros — um aumento de 20%.
- Cerca de 1,2 milhão de pessoas relataram ter sofrido algum tipo de discriminação em Portugal em 2023.
- Entre 2021 e 2024, foram quase mil denúncias por discriminação, ódio ou violência formalizadas à GNR e PSP.
Imigrantes sustentam parte da economia portuguesa
Lorena também apontou o paradoxo econômico da exclusão. Embora alvo de preconceito, os brasileiros são parte ativa da força produtiva portuguesa. De acordo com o Ministério do Trabalho e Solidariedade de Portugal:
- Os brasileiros foram responsáveis por 35,9% de toda a contribuição estrangeira à Previdência Social portuguesa em 2023.
- O repasse chegou a 1,03 bilhão de euros (cerca de R$ 6,37 bilhões), um aumento de 57% em relação ao ano anterior.
- No total, imigrantes contribuíram com 2,68 bilhões de euros, o maior valor já registrado no país.
“Os nossos impostos ajudam a pagar o sistema previdenciário aqui, que é onerado por causa da quantidade volumosa de idosos. Os jovens daqui foram embora, porque aqui é o menor salário da Europa. E quem é que toma os lugares desses que realizam os serviços que os portugueses não podem ou não querem realizar? São os imigrantes”, destacou Lorena.
A jornalista não esconde o abalo emocional que o episódio causou. Disse ter sentido vergonha e dor, comparando o sentimento ao de uma vítima de assédio.
“Fiquei com vergonha. Me senti suja… um sentimento muito próximo do que sentimos ao sofrer assédio. Minha mãe soube pelo vídeo. Não contei a ninguém do Brasil. E confesso: sou privilegiada. Sou branca. E ainda assim doeu. Imagino o que os negros passam todos os dias.”
Mesmo diante da violência simbólica sofrida, Lorena também reconhece o acolhimento de parte da população portuguesa. Ela conta que duas senhoras vizinhas disputam quem será a “avó postiça” do filho Ícaro, de cinco anos. “Vivem fazendo bolinhos pra ele. São um amor.”
Mas pondera: “Portugal bate e assopra. E a gente não precisa ficar aqui a qualquer custo.”
Veja vídeo: