Casal que viveu 74 anos juntos morre no mesmo quarto, no mesmo dia, com 10h de diferença

A história dos dois poderia terminar ali, num obituário discreto de jornal de interior. Mas ela não terminou. Ela se espalhou — porque o amor que se vive com verdade toca o mundo, mesmo sem pretensão.
Casal que viveu 74 anos juntos morre no mesmo quarto, no mesmo dia, com 10h de diferença
Com 10 horas de diferença, casal morre no mesmo dia após 74 anos de união: 'Almas gêmeas', diz genro — Foto: Luciano Leal/Arquivo pessoal

Nem todo amor vira filme, mas alguns desafiam a lógica da vida real e se tornam — sem qualquer roteirista — poesia encarnada. Em Votuporanga, no interior de São Paulo, um casal que compartilhou 74 anos de casamento partiu no mesmo dia, com apenas 10 horas de diferença entre si. A história de Odileta Pansani de Haro e Paschoal de Haro tem o tipo de beleza que não cabe em manchete: ela precisa ser contada com silêncio, cuidado e reverência.

Odileta, aos 92 anos, morreu às 7h do dia 17 de abril de 2025. Paschoal, aos 94, faleceu às 17h do mesmo dia. Ambos faleceram em casa, no mesmo quarto. Dois dias antes, no 15 de abril, comemoraram com a família o aniversário de casamento, celebrado desde 1951, quando se casaram na fazenda dos pais dela, numa cerimônia singela que marcou o início de uma história ininterrupta de amor.

Vieram, se viram e venceram essa grande paixão que sempre um teve pelo outro”, disse emocionado o genro Luciano Leal, em entrevista ao g1.

Mas o que comove não é apenas a coincidência das datas. É o que veio antes.

Onde tudo começou

A história de Odileta e Paschoal teve início ainda nos anos 1940, na praça da Matriz de Votuporanga. Ela tinha 15 anos. Ele, 18. O acaso se apresentou na forma de uma correntinha, que escapou da mão de Paschoal e caiu no braço de Odileta. Olhares, risadas, uma conversa tímida. A partir dali, o relacionamento passou a se construir com base em cartas trocadas — daquelas escritas à mão, com papel amarelado e desejo verdadeiro.

Numa delas, em 1947, Paschoal escreveu:

Desejaria viver ao teu lado, adivinhar os teus desejos, fazer-te feliz, porque só assim eu seria feliz também.”

Em outra, de 1949, Odileta responde:

De você não me esqueci e nem hei de esquecer.”

E não esqueceu. Nem por um dia. O que começou com palavras bordadas à tinta atravessou décadas de convivência, com seis filhos, netos, bisnetos e até uma entidade beneficente criada pelos dois para atender mães solteiras e famílias em vulnerabilidade social. Eles entregavam enxovais e alimentos. Entregavam amor em movimento.

Sempre receptivos, sempre amorosos. Dedicaram o que tinham de mais valioso — o amor entre eles — para ajudar o próximo, sem distinção”, contou o genro.

Veja as cartas:

Carta escrita por Odileta para o, até então, namorado; casal viveu em Votuporanga (SP) — Foto: Luciano Leal/Arquivo pessoal
Carta escrita por Paschoal para Odileta; casal casou em Votuporanga (SP) — Foto: Luciano Leal/Arquivo pessoal

Até o fim, juntos

Nos últimos anos, o tempo passou a cobrar seus sinais. Odileta desenvolveu Alzheimer e passou a ser cuidada por Paschoal. Em 2023, ele foi diagnosticado com um câncer no intestino. Segundo os médicos, o tratamento seria paliativo. Diante da fragilidade de ambos, o genro revela que Paschoal passou a rezar para que eles fossem levados juntos.

Foi atendido.

Ela partiu pela manhã. Ele, no fim da tarde. Na mesma casa. No mesmo quarto. Exatamente como viveram a vida inteira.

Acredito muito que eram almas gêmeas. Se reencontraram nesta vida para viver esse amor”, disse Luciano Leal.

E viveram. Da correntinha até a morte, o amor deles não teve pressa, não teve pausa, não teve ruído. O que houve foi permanência. Cumplicidade. Uma rotina que virou alicerce e uma história que agora ultrapassa o tempo da matéria para entrar no tempo da memória — onde o amor verdadeiro reside.

Quando o amor é herança

Casos como o de Odileta e Paschoal não apenas emocionam: eles desafiam. Em uma época marcada por relacionamentos líquidos, vínculos frágeis e afetos apressados, eles são um lembrete contra o imediatismo afetivo. Mostram que amor não se resume ao início, mas à capacidade de permanecer mesmo quando o corpo falha, a saúde oscila ou o mundo muda de forma.

Essa paixão digna de um filme… cumpriram o que sempre diziam que fariam: partir juntos”, declarou o genro.

O amor deles sobreviveu à passagem do tempo, às dificuldades econômicas, à perda da memória, ao diagnóstico médico e à morte. E deixa como herança uma família inteira que os viu juntos até o último segundo.

A neta e a bisneta nasceram no mesmo 15 de abril que marcou o casamento. As cartas antigas ainda guardam a tinta do começo. E a casa, agora silenciosa, ainda carrega o eco de um amor que não foi de novela — foi real.

Quando o fim é só mais uma página do diário

A história dos dois poderia terminar ali, num obituário discreto de jornal de interior. Mas ela não terminou. Ela se espalhou — porque o amor que se vive com verdade toca o mundo, mesmo sem pretensão.

E é por isso que, tantos anos depois daquele encontro na praça, ainda falamos deles aqui: porque nem todo mundo que se ama se perde. Às vezes, as almas se reconhecem — e vão juntas até o fim.

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